segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Trânsito e violência social, problemática interdisciplinar.






Fiocruz Pernambuco realizou um encontro, em março 2012, para discutir os diversos fatores que levam à morbimortalidade no trânsito.

Marina Lemle

Padrões culturais machistas, individualistas e agressivos de comportamento, publicidades que associam velocidade, status, virilidade e liberdade, imaturidade juvenil, uso de álcool e outras drogas e o aumento da frota de motocicletas estão entre os fatores que contribuem para o crescimento da violência no trânsito no Brasil, que revela-se desproporcional ao dos demais países do Mercosul. 

Com o tema “Novos ângulos de análise para pensar a violência e os acidentes de trânsito no Brasil”, o Laboratório de Estudos em Violência e Saúde (Leves) da Fiocruz Pernambuco, promoveu, em 8 e 9 de março, o II Encontro Interdisciplinar sobre Violência e Saúde, em Recife. Segundo a coordenadora do Leves e organizadora do encontro, Maria Luiza Carvalho, as medidas de intervenção para as violências, incluindo os acidentes de trânsito, requerem um olhar ampliado, interdisciplinar, com definições de políticas públicas intersetoriais e discussões que incluam pesquisadores e a sociedade em geral. 

Convidada a discorrer sobre o tema "Os acidentes de trânsito: exarcebação da violência social", a pesquisadora do Centro de Estudos Latino-Americano sobre Violência e Saúde Jorge Careli da Fundação Oswaldo Cruz (Claves/Fiocruz), Edinilsa Ramos de Souza, explica que a violência no trânsito se constitui por relações de poder, histórica e culturalmente construídas, nas quais estão presentes e se confrontam atores e usuários e poderes e forças desiguais, assimétricas, de distintas naturezas e significados. 

O poder econômico, segundo Edinisla, é representado por automóveis mais potentes, velozes e com mais itens de segurança e por uma publicidade que associa valores como liberdade, velocidade e status, entre outros. Além disso, ela destaca o surgimento de categorias de prestação de serviços como motoboys e mototaxi, sem a infra-estrutura adequada para a sua circulação. 

O poder político teria influência, de acordo com a pesquisadora, através das políticas de desenvolvimento e integração baseadas no modelo rodoviário, no incentivo à compra de veículos - sobretudo motocicletas, nos últimos anos – e na prevenção muito mais dirigida aos ocupantes de veículos, através da obrigatoriedade de itens de segurança e campanhas. 

Edinilsa destaca ainda o poder de uso e ocupação do espaço, uma vez que as vias privilegiam o fluxo dos automóveis e não dos pedestres. Ela frisa, entretanto, que tanto motoristas quanto pedestres desrespeitam a faixa, a via e a sinalização e consomem álcool, aumentando os riscos de acidentes. 

De acordo com a pesquisadora, a vitimização elevada dos homens adultos jovens no trânsito é associada por alguns autores (Hilgers, 1993; Marin e Queiroz, 2000) a personalidades imaturas. “Segundo os autores, a velocidade oferece ao condutor a possibilidade de experimentar sentimentos de grandeza, fantasia e independência que atuam como compensação para um ego angustiado e apático, tornando-o mais vulnerável às fatalidades de trânsito”, explica. 

Para ela, a agressividade freqüente entre os mais jovens, alimentada no processo de globalização, também está associada à morbimortalidade no trânsito, na medida em que o carro permite multiplicar as possibilidades físicas do motorista, representando o prolongamento de seu corpo. “Há uma junção de elementos individuais e culturais que exploram a associação entre a potência do veículo e a virilidade do jovem condutor, resultando em altos riscos”, diz. 

Essa soma, segundo a especialista, favorece a emergência de comportamentos transgressores, já que o jovem motorista acredita que suas atitudes e comportamentos estão certos. 

“O uso de álcool e outras drogas entre condutores estaria associado a este entendimento, uma vez que eles deixam de reconhecer suas limitações e reforçam padrões culturais machistas de comportamento”, explica.
Edinilsa acrescenta que a publicidade tem um papel importante no processo de maior vitimização dos homens, a partir da veiculação de imagens falsas que favorecem a condução perigosa. 

“Estas imagens ocultam os riscos do automóvel e mascaram os prejuízos gerados pelos automóveis privados, não fazendo referências aos congestionamentos e a cultura do individualismo que ele reforça”, critica. 

Segundo Edinilsa, a análise epidemiológica dos registros de ocorrências no trânsito aponta para um vasto campo de possibilidades de intervenção. Para ela, a prevenção, na saúde pública, deve ser pensada a partir da complexidade que o fenômeno requer, sendo imprescindível a construção de abordagens que atuem nos níveis individuais, comunitários e macropolíticos. 


Nos níveis individuais, devem possibilitar a revisão de valores, relações e visões de mundo; nos níveis comunitários, a revisão das formas de circulação humana e de construção de cidades e vias, que podem ser orientadas para a adequação e adaptação às necessidades humanas; no campo macropolítico, a construção e viabilização de políticas e circulação de recursos de forma atenta à não vitimização dos atores envolvidos no trânsito.
De acordo com Edinilsa, o quadro de violência no trânsito no Brasil teve um leve declínio a partir de 1997, com o novo Código Nacional de Trânsito, e tornou a cair com a introdução da Lei Seca, estabilizando-se em torno de 20 óbitos por 100 mil habitantes, patamar elevado em comparação a outros países do Mercosul.
“A construção da cultura de paz no trânsito vem sendo enfatizada nas políticas brasileiras, o que reforça a necessidade de intervenção no campo do trânsito e da mobilidade humana por parte de gestores e profissionais das mais diversas áreas”, defende.
Em 2010, 42.046 pessoas morreram por acidentes de trânsito, representando a segunda maior causa de morte no país, só perdendo para infartos (79.297 mortes). Já o número de internações por lesões no trânsito - 161.023 – ultrapassa em muito os casos de hipertensão, segunda colocada com 97.591 internações, sobrecarregando os leitos hospitalares dos setores de ortopedia e traumatologia.

Complexidade epidemiológica

Guilhermo Macias, da Universidade Nacional de Lanús, na Argentina, foi convidado a discorrer sobre a sua especialidade: a análise da situação epidemiológica dos acidentes de trânsito em sua complexidade, através de uma metodologia que leva em consideração diversos fatores.
Em seus estudos na cidade de Lanús, ele analisou o perfil sócio-demográfico dos óbitos por acidentes de trânsito segundo residência e ocorrência, codificados pela CID-10, e incluiu as variáveis idade, sexo, nível educativo e condição de atividade. Macias também georreferenciou os óbitos segundo local de residência e de ocorrência da morte para avaliar a distribuição geográfica e utilizou dados econômicos para avaliar e comparar Lanús com os outros municípios da grande Buenos Aires, em termos dos coeficientes de mortalidade por acidentes de trânsito. O pesquisador fez análises uni e bivariadas e calculou a Mortalidade Proporcional e a Razão de Mortalidade Proporcional (RMP).

 
Ele descobriu que o perfil epidemiológico das vítimas de trânsito em Lanús é composto principalmente por homens entre 20 e 29 anos, com primário completo ou secundário incompleto e que trabalhavam. Mais da metade deles era ocupante de veículo. O risco dos homens foi quase 3,5 vezes maior que o das mulheres. Os acidentes de trânsito atingem mais a população que mora em locais com piores condições socioeconômicas.
O estudo concluiu que o município de Lanús apresenta um perfil de mortalidade por acidente de trânsito semelhante ao dos países desenvolvidos, figurando entre os municípios que apresentam alta atividade comercial e menores taxas de óbitos. Desenvolvida entre os anos de 1998 e 2004, a pesquisa resultou na tese de doutorado defendida por Macias na Universidade Federal da Bahia, em 2009. A pesquisa fornece aportes para a intervenção sobre os problemas ligados a acidentes de trânsito no nível individual e local.

Pernambuco: motos e mortes

Outro tema em discussão no encontro são os acidentes com transporte terrestre em Pernambuco, que, em 2010, representaram 25,7% dos óbitos por causas externas, o segundo com maior incidência no Estado, atrás apenas de homicídios, de acordo com dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM). Foram 1.879 óbitos naquele ano. Os acidentes de moto são maioria, registrando 30,6% dos casos. Os homens são vítimas em 89% dessas ocorrências, 65% desses com idades entre 20 e 39 anos. Entre os danos causados aos pacientes que sobrevivem, destacam-se as sequelas motoras, psicológicas e mutilações.
O problema levou à criação, em 2011, do Comitê Estadual de Prevenção aos Acidentes de Moto, coordenado pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), cuja responsabilidade é traçar estratégias nos eixos da legislação, fiscalização, educação e saúde para minimizar o número de acidentes de moto no Estado. Hoje, há mais motos do que carros sendo registrados em Pernambuco. Os motociclistas representam 46,66% dos condutores do estado e as motos, 35,53% da frota.

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