Fiocruz Pernambuco realizou um encontro, em março 2012, para discutir os diversos fatores que levam à morbimortalidade no trânsito.
Marina Lemle
Padrões culturais
machistas, individualistas e agressivos de comportamento, publicidades que
associam velocidade, status, virilidade e liberdade, imaturidade juvenil, uso
de álcool e outras drogas e o aumento da frota de motocicletas estão entre os
fatores que contribuem para o crescimento da violência no trânsito no Brasil,
que revela-se desproporcional ao dos demais países do Mercosul.
Com o tema “Novos
ângulos de análise para pensar a violência e os acidentes de trânsito no
Brasil”, o Laboratório de Estudos em Violência e Saúde (Leves) da
Fiocruz Pernambuco, promoveu, em 8 e 9 de março, o II Encontro
Interdisciplinar sobre Violência e Saúde, em Recife. Segundo a coordenadora
do Leves e organizadora do encontro, Maria Luiza Carvalho, as
medidas de intervenção para as violências, incluindo os acidentes de trânsito,
requerem um olhar ampliado, interdisciplinar, com definições de políticas
públicas intersetoriais e discussões que incluam pesquisadores e a sociedade em
geral.
Convidada a
discorrer sobre o tema "Os acidentes de trânsito: exarcebação da
violência social", a pesquisadora do Centro de Estudos
Latino-Americano sobre Violência e Saúde Jorge Careli da Fundação Oswaldo Cruz
(Claves/Fiocruz), Edinilsa Ramos de Souza, explica que a violência no
trânsito se constitui por relações de poder, histórica e culturalmente
construídas, nas quais estão presentes e se confrontam atores e usuários e
poderes e forças desiguais, assimétricas, de distintas naturezas e
significados.
O poder econômico,
segundo Edinisla, é representado por automóveis mais potentes, velozes e com
mais itens de segurança e por uma publicidade que associa valores como
liberdade, velocidade e status, entre outros. Além disso, ela destaca o
surgimento de categorias de prestação de serviços como motoboys e mototaxi, sem
a infra-estrutura adequada para a sua circulação.
O poder político
teria influência, de acordo com a pesquisadora, através das políticas de
desenvolvimento e integração baseadas no modelo rodoviário, no incentivo à
compra de veículos - sobretudo motocicletas, nos últimos anos – e na prevenção
muito mais dirigida aos ocupantes de veículos, através da obrigatoriedade de
itens de segurança e campanhas.
Edinilsa destaca
ainda o poder de uso e ocupação do espaço, uma vez que as vias privilegiam o
fluxo dos automóveis e não dos pedestres. Ela frisa, entretanto, que tanto
motoristas quanto pedestres desrespeitam a faixa, a via e a sinalização e
consomem álcool, aumentando os riscos de acidentes.
De acordo com a
pesquisadora, a vitimização elevada dos homens adultos jovens no trânsito é
associada por alguns autores (Hilgers, 1993; Marin e Queiroz, 2000) a
personalidades imaturas. “Segundo os autores, a velocidade oferece ao condutor
a possibilidade de experimentar sentimentos de grandeza, fantasia e
independência que atuam como compensação para um ego angustiado e apático,
tornando-o mais vulnerável às fatalidades de trânsito”, explica.
Para ela, a
agressividade freqüente entre os mais jovens, alimentada no processo de
globalização, também está associada à morbimortalidade no trânsito, na medida
em que o carro permite multiplicar as possibilidades físicas do motorista,
representando o prolongamento de seu corpo. “Há uma junção de elementos
individuais e culturais que exploram a associação entre a potência do veículo e
a virilidade do jovem condutor, resultando em altos riscos”, diz.
Essa soma, segundo
a especialista, favorece a emergência de comportamentos transgressores, já que
o jovem motorista acredita que suas atitudes e comportamentos estão certos.
“O uso de álcool e
outras drogas entre condutores estaria associado a este entendimento, uma vez
que eles deixam de reconhecer suas limitações e reforçam padrões culturais
machistas de comportamento”, explica.
Edinilsa
acrescenta que a publicidade tem um papel importante no processo de maior
vitimização dos homens, a partir da veiculação de imagens falsas que favorecem
a condução perigosa.
“Estas imagens
ocultam os riscos do automóvel e mascaram os prejuízos gerados pelos automóveis
privados, não fazendo referências aos congestionamentos e a cultura do
individualismo que ele reforça”, critica.
Segundo Edinilsa,
a análise epidemiológica dos registros de ocorrências no trânsito aponta para
um vasto campo de possibilidades de intervenção. Para ela, a prevenção, na
saúde pública, deve ser pensada a partir da complexidade que o fenômeno requer,
sendo imprescindível a construção de abordagens que atuem nos níveis
individuais, comunitários e macropolíticos.
Nos níveis
individuais, devem possibilitar a revisão de valores, relações e visões de
mundo; nos níveis comunitários, a revisão das formas de circulação humana e de
construção de cidades e vias, que podem ser orientadas para a adequação e
adaptação às necessidades humanas; no campo macropolítico, a construção e
viabilização de políticas e circulação de recursos de forma atenta à não
vitimização dos atores envolvidos no trânsito.
De acordo com
Edinilsa, o quadro de violência no trânsito no Brasil teve um leve declínio a
partir de 1997, com o novo Código Nacional de Trânsito, e tornou a cair com a
introdução da Lei Seca, estabilizando-se em torno de 20 óbitos por 100 mil
habitantes, patamar elevado em comparação a outros países do Mercosul.
“A construção da
cultura de paz no trânsito vem sendo enfatizada nas políticas brasileiras, o
que reforça a necessidade de intervenção no campo do trânsito e da mobilidade
humana por parte de gestores e profissionais das mais diversas áreas”, defende.
Em 2010, 42.046
pessoas morreram por acidentes de trânsito, representando a segunda maior causa
de morte no país, só perdendo para infartos (79.297 mortes). Já o número de
internações por lesões no trânsito - 161.023 – ultrapassa em muito os casos de
hipertensão, segunda colocada com 97.591 internações, sobrecarregando os leitos
hospitalares dos setores de ortopedia e traumatologia.
Complexidade epidemiológica
Guilhermo
Macias, da Universidade Nacional de
Lanús, na Argentina, foi convidado a discorrer sobre a sua especialidade: a
análise da situação epidemiológica dos acidentes de trânsito em sua
complexidade, através de uma metodologia que leva em consideração diversos
fatores.
Em seus estudos na
cidade de Lanús, ele analisou o perfil sócio-demográfico dos óbitos por
acidentes de trânsito segundo residência e ocorrência, codificados pela CID-10,
e incluiu as variáveis idade, sexo, nível educativo e condição de atividade.
Macias também georreferenciou os óbitos segundo local de residência e de
ocorrência da morte para avaliar a distribuição geográfica e utilizou dados
econômicos para avaliar e comparar Lanús com os outros municípios da grande
Buenos Aires, em termos dos coeficientes de mortalidade por acidentes de
trânsito. O pesquisador fez análises uni e bivariadas e calculou a
Mortalidade Proporcional e a Razão de Mortalidade Proporcional (RMP).
Ele descobriu que
o perfil epidemiológico das vítimas de trânsito em Lanús é composto
principalmente por homens entre 20 e 29 anos, com primário completo ou
secundário incompleto e que trabalhavam. Mais da metade deles era ocupante de
veículo. O risco dos homens foi quase 3,5 vezes maior que o das mulheres. Os
acidentes de trânsito atingem mais a população que mora em locais com piores
condições socioeconômicas.
O estudo concluiu
que o município de Lanús apresenta um perfil de mortalidade por acidente de
trânsito semelhante ao dos países desenvolvidos, figurando entre os municípios
que apresentam alta atividade comercial e menores taxas de óbitos. Desenvolvida
entre os anos de 1998 e 2004, a pesquisa resultou na tese de doutorado defendida por Macias na Universidade Federal
da Bahia, em 2009. A pesquisa fornece aportes para a intervenção sobre os
problemas ligados a acidentes de trânsito no nível individual e local.
Pernambuco: motos e mortes
Outro tema em
discussão no encontro são os acidentes com transporte terrestre em Pernambuco,
que, em 2010, representaram 25,7% dos óbitos por causas externas, o segundo com
maior incidência no Estado, atrás apenas de homicídios, de acordo com dados do
Sistema de Informação de Mortalidade (SIM). Foram 1.879 óbitos naquele ano. Os
acidentes de moto são maioria, registrando 30,6% dos casos. Os homens são
vítimas em 89% dessas ocorrências, 65% desses com idades entre 20 e 39 anos.
Entre os danos causados aos pacientes que sobrevivem, destacam-se as sequelas
motoras, psicológicas e mutilações.
O problema levou à
criação, em 2011, do Comitê
Estadual de Prevenção aos Acidentes de Moto, coordenado pela Secretaria
Estadual de Saúde (SES), cuja responsabilidade é traçar estratégias nos eixos
da legislação, fiscalização, educação e saúde para minimizar o número de acidentes
de moto no Estado. Hoje, há mais motos do que carros sendo registrados em
Pernambuco. Os motociclistas representam 46,66% dos condutores do estado e as
motos, 35,53% da frota.
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